Factores físicos, biológicos e
sociais estão directamente
relacionados com a doença.
20% da população portuguesa
sofre em silêncio
sofre em silêncio
Por Sílvia Morgado
"Deixei de ter sensações. Deixei de ter alegria e deixei de ter tristeza. Eu não sentia nada."
Ana (nome fictício), hoje com 37 anos, começou a ter sintomas que rapidamente percebeu que não ia conseguir ultrapassar, pelo menos sozinha. A dificuldade em articular o discurso, a troca de palavras e a falta de vocabulário levaram-na a bater à porta de um psiquiatra. "Não foi fácil admitir que estava doente e tomar a decisão de ir ao médico", diz, acrescentando que marcou consulta duas vezes mas apenas à terceira conseguiu ir devido ao estigma que ainda há ser muito grande.
Ana (nome fictício), hoje com 37 anos, começou a ter sintomas que rapidamente percebeu que não ia conseguir ultrapassar, pelo menos sozinha. A dificuldade em articular o discurso, a troca de palavras e a falta de vocabulário levaram-na a bater à porta de um psiquiatra. "Não foi fácil admitir que estava doente e tomar a decisão de ir ao médico", diz, acrescentando que marcou consulta duas vezes mas apenas à terceira conseguiu ir devido ao estigma que ainda há ser muito grande.
A depressão acontece num momento em que Ana tinha um relacionamento feliz, amigos, família, casa, carro e tudo o que qualquer pessoa deseja ter. Ainda hoje se lhe perguntarmos qual o motivo que despoletou esta doença, Ana não sabe. Desconfia apenas de alguns momentos menos bons que certamente agudizaram ainda mais a doença mas de resto nada mais.
Dor em silêncio
Esta fase viveu-a toda praticamente sozinha. Preferiu não contar a ninguém. As pessoas só ficaram a saber mais tarde. "Isso tem a ver com a minha personalidade. Não queria que as pessoas olhassem para mim e me chamassem coitadinha".
Mal-estar, vómitos, náuseas, sensibilidade ao ruído e fraqueza no corpo. Estes sintomas, acompanhados da vontade de não fazer nada nem de ver ninguém na maior parte das vezes, corriam em paralelo com um choro convulsivo, inexplicável. Por todas as razões e por nenhuma, as lágrimas surgiam. "Chorava por nada. Vinha de casa a chorar até à porta do trabalho, pintava-me, arranjava-me, entrava e depois sorria para toda a gente. Quando saía, ia a chorar até casa."
Nunca tentou o suicídio mas foi algo que lhe passou pela cabeça. Segundo o prof. Manuel Teixeira, presidente do Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, cinco em cada dez pessoas corre o risco de se suicidar. "Passa pela cabeça desaparecermos porque só assim se dá um fim ao sofrimento. Pensas que a qualquer momento vais flipar", conta Ana.
A coragem de vencer
Apesar de na altura não ter vontade de fazer nada, obrigava-se a fazer, a sair de casa, a estar com pessoas, a nāo faltar ao trabalho. A decisão de nāo ir pelo caminho mais fácil foi ponto assente desde o início deste processo que demorou cerca de oito meses. A doença, diz Ana, foi entendida com um sinal de fraqueza e ela nāo é fraca.
Ainda hoje, já tendo passado por esta experiência e lutado com todas forças para se manter à tona, quando olha para trás, tem dificuldade em perceber como algumas pessoas deixam que a doença vença. "Acho que as pessoas deviam lutar mas muitas desistem. Quanto mais espaço a depressão ganha pior. Se ela toma conta de uma pessoa já não há volta a dar."
Um ano e meio já correu desde que deixou de tomar os últimos medicamentos que a ajudaram a ultrapassar esta doença crónica. Apesar de estar bem, feliz, confessa ter receio de que a doença volte e esse é um dos seus grandes medos. "Acho que a depressão nunca está totalmente curada. Estou curada da parte depressiva mas a pessoa não volta a ser a mesma. O receio de cair é tão grande que quando estou um bocadinho mais em baixo até tenho medo que esteja a voltar".
"O meu estado de infelicidade, a dor, o mal-estar eram tal, que eu queria morrer. Sentia-me feia. Estive uma semana sem me levantar da cama, sem tomar banho, sem reagir a nada." Foi desta forma que Marta (nome fictício), paginadora há 23 anos, descreveu a fase inicial da doença, muito complicada enquanto o corpo não acerta com os medicamentos ou eles não fazem efeito tão rapidamente com se desejaria.
Quando a doença ainda é preconceito
Os primeiros sintomas que aparecem nada têm a haver com o que normalmente se associa à depressão. Os primeiros sinais revelam-se a nível do coração, com arritmias de 130/140 e tensões muito altas de 18/12. Depois de ter ido a um cardiologista, o médico mandou-a parar imediatamente pois o risco de ter um AVC era bastante elevado. Apesar do cansaço que a acompanhava já há algum tempo e do choro que volta e meia teimava em aparecer, Marta nunca suspeitou, numa fase inicial, de que tinha uma depressão.
Numa primeira consulta com a médica de família, foi-lhe detectada uma pequena depressão e receitados alguns medicamentos. "Andei 2 ou 3 meses a tomar medicação receitada pela médica de família. Não estava a dar resultado, não sentia melhoras. Os meus amigos aconselharam-me a ir a um psiquiatra." A decisão de ir a um especialista não foi tomada de ânimo leve porque o preconceito era muito grande, a vergonha e o medo eram ainda maiores. Chegou mesmo a pensar que estaria maluca, uma pessoa que tem tudo, que é feliz, só pode estar maluca quando precisa de ir a um psiquiatra. Pelo menos era este o estigma presente na sua cabeça. Hoje sabe que foi a melhor de todas as suas decisões, que muito provavelmente foi esta pessoa que a salvou de ir até um extremo que poderia ser fatal. "Eu não tinha a ideia de que esta doença abrange todo o tipo de pessoas, idades, classe."
Querer o 8 e o 80
Ao contrário de Ana, Marta, com 44 anos, sabe exactamente o que lhe provocou este estado de ansiedade, de pânico, de tremores, de querer o 8 ou o 80. "A doença veio de uma grande pressão do trabalho, nomeadamente do meu chefe. Sonhava com ele, chorava porque ele não me dava trabalho, tratava-me mal. Fui humilhada, menosprezada e deixei de ter valor quase de um momento para o outro."
O marido, companheiro de muitos anos, o foi principal pilar durante este processo todo. Desde o primeiro momento percebeu que alguma coisa de errado se passava com Marta, que ela não era a mesma que gostava de sair, de estar com os amigos, de ir a centros comerciais, de se arranjar, de viver. "O meu marido foi a pessoa que mais me apoiou. Há um ano que deixei de ser dona de casa. Deixei de limpar, de engomar, de cozinhar. O meu marido é que tratava de tudo."
Por outro lado, a reacção da família não foi das melhores. "Com a minha família foi mais complicado. Alguns disseram que eu estava maluca e outros nem ligaram. A partir de certo momento todos perceberam que eu estava com uma depressão muito grave."
Além de todas as dificuldades por que passou, inclusive já quando tomava os medicamentos, mas que a deixavam de rastos, há um momento que nunca mais vai esquecer. "Lembro-me uma vez que me levantei e apeteceu-me imenso ir a Sesimbra, que é um dos locais de que mais gosto. O meu marido, satisfeito por pensar que querer sair de casa significava melhoras, vontade de reagir para a vida, levou-me. Íamos a meio do caminho comecei a sentir-me mal, em pânico, com medo da confusão, de muita gente, com tremores, muita ansiedade. Foi horrível. É uma sensação de mal-estar inexplicável."
Durante um ano, a toma de 5/6 comprimidos por dia era obrigatória. A par disso, Marta foi acompanhada por uma psicóloga durante todo o processo que aos poucos e poucos a ajudou a ganhar estabilidade, auto-estima e confiança.
Recaída inesperada
Em Janeiro estava numa fase final da cura da depressão, a chamada fase de desmame. "Já só estou a tomar um comprimido dia sim e dia não. Acho que já estou com a depressão quase curada. Sinto-me bem." Mas a verdade é que passado um mês, a morte da mãe, com quem tinha uma relação muito próxima e especial, fez com que Marta tivesse uma recaída, esta muito mais grave. Mas porque o apoio da família e dos amigos é o mais importante, a luta teve de continuar. Hoje em dia já regressou ao seu novo trabalho numa empresa familiar, na parte administrativa, depois de se ter despedido do jornal onde trabalhava. Os acompanhamentos continuam.
"As consequências físicas e psicológicas são terríveis. Mantive sempre a lucidez mas cheguei a pensar que estava arrumado para a profissão." Aos 56 anos, António Manuel (nome fictício) já passou por duas outras depressões, a primeira quando tinha apenas 32 anos devido ao desemprego e a questões pessoais. "Estava em conflito com uma antiga namorada, juíza, que era muito exigente, que colocou muita pressão sobre mim e logo nessa altura estoirei." A segunda depressão foi em 2006. Nessa altura foi encaminhado para o Hospital Júlio de Matos.
O que o levou a quebrar pela terceira vez foi um estado de grande ansiedade, um sentimento de culpa vindo não sabe bem de onde e um esgotamento nervoso e físico que o levaram a perder muito peso. "Fui acumulando dentro de mim uma tensão muito nervosa também devido a pressão e concorrência desleal de colegas de trabalho."
Assim como Marta, António trabalha no ramo da comunicação social e teve mesmo de parar durante cerca de três meses para recuperar do cansaço e ganhar o equilíbrio de que tanto precisa para estar bem.
Um homem também cai
Questionado porque acha que a depressão é uma doença mais associada às mulheres, António refuta categoricamente essa ideia: "As pessoas têm o preconceito de que as depressões são para as mulheres e para maricas. Isso é completamente errado. Grandes chefes militares tiveram depressões graves. Pessoas cultas e inteligentes também." De acordo com Francisco Allen Gomes, reconhecido psiquiatra no meio médico, esta doença manifesta-se mais na mulher porque ela "tem um estatuto social mais frágil, economicamente mais dependente e porque está mais exposta a situações de abuso nas suas relações interpessoais." Uma ou outra justificações, o certo é que não foi fácil encontrar um homem que se quisesse falar e contar um pouco da sua estória.
O momento em que António chegou a todos os limites foi a 28 de Novembro do ano passado, na sequência de muito cansaço acumulado, noites mal dormidas, refeições fora de horas. "Quebrei, chorei, tive um ataque de pânico e no dia a seguir não consegui ir trabalhar." A mulher foi a grande companheira de todas as horas, assim como a filha, de apenas dez anos.
O suicídio passou-lhe pela cabeça mas daí a passar ao acto em si jamais. "O suicídio passa pela cabeça mas as minhas convicções católicas e o meu apego pela vida impede isso."
O regresso ao trabalho foi fundamental para retomar as rotinas do dia a dia e para se sentir vivo, activo. Actualmente continua a ser medicado e acompanhado até estar totalmente restabelecido. Diz quem o conhece e convive com ele, que António está metade do homem que era, que perdeu a força, a genica, a garra que tanto o caracterizavam.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, a depressão vai tornar-se a doença mais comum em todo o mundo, afectando mais pessoas do que qualquer outra doença, incluindo cancro ou doenças cardíacas.
As conclusões a que chegaram vários especialistas no último Simpósio sobre Dor e Depressão, realizado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, são bastante claras: a prevenção e o tratamento dos sintomas físicos, que podem levar à remissão da doença, são elementos fundamentais no combate à depressão. Ana, Marta e António são apenas três dos muitos casos que se registam anualmente em Portugal. Cada um, à sua maneira, conseguiu ultrapassar o que para muitos é um caminho de escuridão sem fim, um vazio extremo, sem sentido, e que leva ao suicídio de 1200 pessoas por ano em Portugal.
A Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental realiza ao longo de todo o ano várias iniciativas e campanhas sobre a doença, tentando informar, esclarecer, desmistificar e modificar comportamentos. Estar bem informado sobre como se manifesta a doença, quais os sintomas que lhes estão associados e o impacto que provoca no dia-a-dia é meio caminho para nos conhecermos e para se conhecer quem está à nossa volta. Sim, porque esta doença pode bater à porta, e ou se tem a chave correcta para abrir ou pode ficar-se trancado. Para sempre.
Sintomas associados à depressão
Tristeza
Cansaço
Choro convulsivo
Pessimismo/negatividade
Perda/ganho apetite
Sentimento de culpa
Perda de interesse no que o rodeia
Incapacidade de tomar decisões
Alterações de humor
Distúrbio no sono
Falta de energia
Falta de interesse sexual
Pensamentos suicidas
Entrevista/perfil
Francisco Allen Gomes
Francisco Allen Gomes
Psiquiatra. 68 anos. Até se reformar, foi durante muitos anos chefe do serviço de Psiquiatria em Coimbra. Foi um dos fundadores da Sociedade Portuguesa da Sexologia Clínica.
Sílvia Morgado - O que é a depressão?
Francisco Allen Gomes - É uma perturbação do humor em que, para além do sofrimento subjectivo de tristeza, desespero e vivências de culpa, há sintomas da esfera cognitiva (dificuldades de concentração, de fixação), da esfera volitiva (uma sensação geral de incapacidade e de inapetência), queixas físicas e um conjunto de alterações de alguns parâmetros - sono, peso, apetite, líbido e variações diurnas de humor.
S.M. - depois de ser feito um diagnóstico, é fácil para uma pessoa admitir que está doente e que precisa de ajuda?
F.A.G. - Após feito o diagnóstico no âmbito de uma boa relação médico-doente, com certeza.
S.M - Há alguma causa que seja comum a todos os doentes nesta doença?
F.A.G. - A perturbação mental em geral resulta sempre de uma interacção entre uma determinada personalidade e um acontecimento de vida. Provavelmente, antes de se desencadear um quadro depressivo, cerca de 80% das pessoas referem situações adversas, nomeadamente, perdas significativas.
Curiosidades
O Dia Europeu da Depressão comemora-se a 1 de Outubro
Dados avançados pela IMS Health indicam que entre Setembro de 2009 e Agosto de 2010 foram vendidos em Portugal 6,885 milhões de embalagens de antidepressivos
Uma em cada quatro mulheres e um em cada dez homens podem vir a sofrer de depressão
No primeiro mês de tratamento o risco de suicídio é maior
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